quinta-feira, janeiro 24, 2013

Era uma vez...

...um lugarzinho no meio do nada. Mentira, era no meio de tudo! De tudo o que há de mais bacana para um estudante. Ficava a duas quadras da estação Central Square. Estação que separa simplesmente MIT e Harvard. E eis que fui parar lá. Há exatamente 10 anos.

Aos 23 anos eu resolvi realizar o sonho de estudar fora, e me candidatei a uma vaga para um curso de extensão em comunicação. Procurei vários, mas quando encontrei esse, os outros sumiram da minha mente. Eu queria ele. Acho que deixei a mulher da secretaria louca de tantos e-mails e telefonemas, até que ela me respondeu que o conselho me aprovou, mas estavam com receio porque no curso não havia estrangeiros que morassem fora dos EUA, e que apesar de eu ter comprovado proficiência no exame, eu ainda teria dificuldade com a língua, afinal o curso era comunicação. Receio e dificuldade, palavras mágicas...hum, desafio? Tô dentro!

Não foi fácil. Toda vez que vou a Cumbica me lembro do momento que virei as costas para minha família e amigos que estavam lá se despedindo, e adentrei a fila da Receita Federal. Ao chegar ao portão de embarque eu desmontei, literalmente. Agachei encostada na pilastra e chorei igual criança. Não teve quem não olhou, e um segurança veio me perguntar se estava tudo bem. Não estava. Mas eu sabia que iria ficar. Foi uma escolha minha. Realizar sonhos, na maioria das vezes, requer enfrentar um caminho cheio de pesadelos. E ficar tão longe das pessoas que amo foi o maior deles.

Ao chegar em Boston eu tive um anjo chamado Gisele que me recebeu em sua casa até liberarem o apartamento que ela tinha alugado para mim. Ela e sua família tornaram tão mais fácil o primeiro impacto da adaptação a uma vida nova. Serei eternamente grata por chegar em um local estranho, a 5 graus negativos e muita neve, e encontrar um lar cheio de amor tupiniquim (e caipira como eu!).  

Depois de uma semana, lá estava meu apartamento me esperando. mas eu tinha que comprar móveis, utensílios, etc. E como carregar? Lá nada é simples, e ninguém te ajuda. Resultado: aluguei um caminhão. Feliz da vida com essa solução, o cara me dá a chave do mesmo e pede para devolver no final do dia. Sim, eu tinha que dirigi-lo! E lá fui eu me sentindo a Sula Miranda, parando em Wal Mart, Target, Home Depot e "decorando" a minha casa, carregando no caminhão, e descarregando no apartamento. A esta altura eu suava como se estivesse no verão da Bahia. E enfim, fui devolver o caminhão, e tive a grata surpresa de me deparar com a linda e simpática neve. Se dirigir um caminhão era novidade, imagina dirigi-lo na neve? E pelo visto eu não era a única com pouca experiência, porque de repente em um cruzamento, perdida, um sedan não consegue frear e bate com tudo na minha lateral. Coitado do cara, assustou mais com a garota Brasileira aos prantos descendo do caminhão, do que com a batida. Ainda bem que lá tudo funciona e no fim deu tudo certo. Lembro de ligar para meus pais depois de desencaixotar tudo no apartamento, feliz da vida, com aquele sentimento delicioso de "eu consegui".

E aí começam as aulas, e realmente só tinham gringos. Quer dizer, a gringa ali era eu. Enfim, vocês entenderam. E era uma delícia, fazíamos trabalho de campo, entrevistávamos pessoas na rua, criávamos texto e líamos em voz alta, todos comentavam, davam idéias. E acabava a aula, e ninguém queria saber mais nada da minha vida. Eu me tornava uma estranha. Uma estranha que voltava sozinha de metrô para sua casa sem abrir a boca. Engraçado que minha vontade de interagir era tanta que o cara no guichê do metrô falava o automático "Oi, td bem?" e eu respondia "Tudo e vc?". Ele assustou, afinal americanos não estão acostumados com isso, e no terceiro dia começou a me paquerar e me dar passagens de graça. Morri de medo e passei a comprar na máquina direto. Malditas Brasileiras piriguetes em busca de green card que ferram nossa imagem lá fora. Não podia nem sorrir para os caras que eles achavam que já queria algo mais. Fiquei traumatizada.

E aí, eu que sempre tive uma vida social agitada, me via passando noites e noites trancafiada, vendo a neve subir na minha janela (eu morava no térreo), e comunicando com o Brasil por MSN. Até que escolhi uma disciplina de negócios e a turma era enorme, aula no auditório, e em um momento resolveram dividir em turmas menores. Eu sento e coloco a placa do meu nome na minha frente, e olho a garota ao lado: Renata. Nos entreolhamos e nos identificamos. Brasileiras, claro. De novo, do interior. Mais ainda, frequentávamos o mesmo dentista (ainda não sei como esse assunto surgiu logo de cara!) e o pai dela havia construído um consultório em forma de castelinho na esquina da minha casa em Rio Preto, onde eu sempre ia brincar quando pequena. Foi amizade eterna a primeira vista. E uma nova vida social pra mim em Boston. A Renata morava lá há anos e conhecia tudo e todos, e fizemos uma turma sensacional, da qual saiu inclusive o casamento dela com o Colin, do qual tenho maior orgulho de ser madrinha no civil e no religioso. Eu poderia passar horas descrevendo as inúmeras palhaçadas que aprontamos, como churrasco Brasileiro na minúscula varanda nevando, as noites de quarta no Pravda e de sábado na Venu, onde a tradição era virar uma bebida azul chamada "Mongolian Motherfucker". Saudades dessa disposição!

Após dois meses por lá, já mais adaptada, comecei a me incomodar de ficar sem produzir. Eu precisava trabalhar. Mas em que? Eu sempre fui imprestável para qualquer tipo de trabalho manual, ou que exija coordenação motora. E emprego na minha área, para uma estrangeira com visto estudante, seria bem difícil. Mas comecei a me enfiar em palestras gratuitas e descobri que havia uma comunidade Brasileira gigante na área, e que eles atuavam em diversas áreas. Até que descobri um grupo de voluntários maravilhosos, que fazia ações de prevenção a HIV e suporte a famílias de usuários de drogas, e marquei de falar com a coordenadora. Eles estavam produzindo um filme, e logo eu já estava ajudando com a legenda e divulgação. Tinha encontro às quartas e eu me perguntava se estava ajudando mesmo, ou sendo ajudada, de tanto que me fazia bem frequentar aquele grupo, conversar com aquelas pessoas maravilhosas. Cada história de Brasileiro que largou tudo e foi arriscar a vida por lá, trabalhando em 3, 4 empregos, morrendo de saudade e de medo por não estar legalizado, mas ainda tinha tempo para se dedicar ao grupo e ajudar o próximo.

E aí que surgiu uma vaga para coordenadora da Câmara de Comércio Brasil-EUA na região. Era um startup, uma iniciativa do consulado com alguns empresários que atuavam por lá. Fui fazer entrevista e me escolheram. De repente eu estava trabalhando na minha área, sendo remunerada, e ainda por cima ajudando micro empresários Brasileiros que precisavam de suporte administrativo para se estruturarem na América. Foi um presente de Deus, só pode. Tive até a oportunidade de conhecer um cara que admiro muito, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Finalmente eu tinha estruturado a minha vida por lá, comprei meu carro e era independente novamente. Ah, como eu gosto disso...mesmo com todos os tropeços que a vida pode nos dar, como viajar um final de semana e encontrar na volta apenas a antena do carro aparecendo em meio a uma montanha de neve, e ter que comprar uma pá e "desenterrá-lo" sozinha, sem passar um tiozinho na rua se oferecendo para ajudar, ou ainda quebrar a descarga do seu único banheiro e você ter que desmontá-la, descobrir a peça que deve trocar, pedir em inglês para o cara na loja e instalar.

E tinha a parte maravilhosa, como o fato de New York estar a mesma distância de São Paulo-Rio Preto, além das inúmeras estações de ski e outlets nos arredores, e a própria Boston ser linda e rica histórica, cultural e gastronomicamente. Meus pais foram me visitar e ficaram encantados. Mas a dor de vê-los embarcar doeu e me fez chorar tudo de novo no estacionamento do aeroporto. A vida estava ótima, mas não estava completa. E nunca estaria por lá.

Enfim, resolvi escrever hoje, porque passada uma década, não consigo imaginar minha vida sem ter vivido essa experiência. O curso foi ótimo, Harvard é inexplicável, mas o aprendizado além acadêmico foi incomparável. Após um ano vivendo lá, tive a oportunidade de ficar, mas preferi voltar. Não me arrependo. O ano de 2003 foi o mais importante da minha vida, e saí de Boston no auge, eternizando assim esse momento ímpar. No meu último mês lá, meus sobrinhos mais velhos ficaram comigo, estudando inglês. Nunca esqueço que ao fechar a porta do meu apartamento, chorando (de novo!), eles me abraçaram e me parabenizaram. Viram que não era fácil. Mas faria tudo de novo, sem alterar uma vírgula. Nunca mais voltei, sei que não será a mesma coisa. Mas acho que não passo um dia sequer sem citar ou lembrar de algo que vivi e aprendi por lá...